A Importância do Ridículo
O trecho abaixo é parte do livro "Le
Défi des Langues - Du gâchis au bon sens"
("O Desafio das Línguas - da má gestão
ao bom senso"). Esse excelente livro da editora L'Harmattan
(Paris) foi publicado em português em 2002, numa co-edição
da Pontes Editores e BEL.
Na maior parte das reuniões, o recurso da interpretação
não dispensa uma boa parte dos participantes de falar uma língua
estrangeira. Essa obrigação acarreta novos inconvenientes. É
o caso em particular daqueles que escolhem exprimir-se na língua de Shakespeare.
A fonética inglesa, nunca se dirá o bastante, impõe graves
problemas à grande maioria dos povos. Por exemplo, três quartos
da população mundial não têm, em sua língua,
os dois sons [θ] e [ð],
correspondentes ao th inglês, que se pronunciam aplicando-se a
língua contra a extremidade dos dentes incisivos. Ora, é o som
[θ] que permite diferenciar thick
("espesso") de sick ("doente") e de tick ("tique"
ou "recolocar alguém em seu lugar"). Com freqüência
o contexto permite evitar os mal-entendidos. Mas um outro fator que desempenha
um importante papel na comunicação humana continua presente mesmo
se o sentido é compreendido: o ridículo. Eu nunca esquecerei os
risos que havia provocado um delegado de um país cujo nome eu omitirei
e que, buscando com dificuldade exprimir-se num inglês mal dominado, havia
desastradamente feito uma pausa, sem dúvida procurando a palavra certa,
após haver pronunciado: My government sinks..., isto é,
não, como ele acreditava, "meu governo pensa" (thinks),
mas "meu governo naufraga" tal qual um navio que afunda no oceano.
Dado que todo mundo considerava o país em questão como à
beira do abismo, essa pronúncia inoportuna desencadeou a hilaridade dos
participantes.
É bom ter bastante humor para poder rir uns dos outros. Mas o que é
chocante nesse tipo de incidente, é seu lado injusto. A vítima,
em lugar de ser ajudada, é posta numa situação inferior
precisa-mente porque ela é vítima. Vítima de quê?
Da injustiça dos sistemas de comunicação atualmente em
vigor no mundo. Com efeito, esse risco de ridículo é por definição
poupado aos anglo-saxões e aos outros povos cuja língua goza de
um estatuto oficial.
Outro exemplo: na abertura de um
encontro internacional, a Sra. Helle Degn, uma ministra dinamarquesa,
querendo desculpar-se por sua falta de familiaridade com o assunto
para o qual havia recentemente assumido suas funções,
disse: "I'm in the beginning of my period" (8)
(Eu estou no início de meu período [menstrual]).
Ela se tornou a piada daquela assembléia. Por quê?
Porque mesmo uma pessoa com mais de 10000 horas de estudo e prática
da língua, como é o caso dos escandinavos, está
sujeita às armadilhas do inglês.
Os francófonos têm também
eles a ocasião de saborear a inferioridade de seus parceiros.
Um dia, quando eu trabalhava ainda na ONU, todas as delegações
de língua francesa divertiram-se muito ao escutar a crítica
de um representante, que repetia a expressão la politique
du Cuba (9) constantemente, e que com isso
se desmoralizava cada vez mais. Se nós tivéssemos
o coração mais aberto e um pouco mais de compreensão
humana, nós nos indignaríamos contra um sistema que
impõe tais armadilhas a pessoas que de resto são competentes.
Na oportunidade, o francês do orador era em todos os aspectos
notável. Eu o situaria no nível 98 em relação
ao índice 100 definido no capítulo III. O artigo diante
do nome da ilha foi seu único erro. Ora, esse é ainda
mais perdoável uma vez que se diz la politique du Japon
("a política do Japão"), du Togo
("do Togo")... Um francófono nunca cometeria esse
erro, como os anglófonos no caso do th. É eqüitativo
esse sistema que não reparte igualmente entre os povos o
risco do ridículo? Num debate político, tornar-se
ridículo é apresentar a posição que
se defende sob uma circunstância desvantajosa. Será
que é para conservar essa superioridade inicial que as grandes
potências manobram sempre para evitar que se abra enfim o
dossiê da comunicação lingüística
no mundo?
___________
8. Jyllands-Posten,
14 de janeiro de 1994; Sprog og erhverv, 1, 1994.
9. "A
política do Cuba": além de errada a expressão
soa chula em francês. (N.T.)
pág. 114. Traduzido por Ismael Mattos Andrade
Ávila http://www.aleph.com.br/kce/artigo09.htm
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