A boa lingua
A respeito
da boa língua eu conversarei com você, se você
permitir. “Boa em que sentido?”, você perguntará,
consciente dos muitos significados desta palavra. “De todas as maneiras”,
responderei. Justamente isso me agrada nesta língua, que
em tantos aspectos ela me parece boa.
Boa no
sentido gostosa, por exemplo. Eu colho dela um prazer, comparável
ao prazer que dá um bom prato ou um vinho aromático.
Boa como uma boa música: agradável aos ouvidos,
melodiosa, que traz alegria pela simples harmonia de seus sons.
Boa, como uma boa brincadeira: certeira eu a acho, capaz
de tocar com beleza e objetividade. Boa, como um bom acontecimento.
Você anelou ter um livro esgotado, e eis que
por acaso num sebo você o encontra. Imperfeito: um tanto manchado, com uma
ou duas páginas um pouquinho rasgadas. Mas ele custa pouco, e você o
adquire como um tesouro. Igualmente, a língua Esperanto podemos sentir
como um tesouro: imperfeita, certamente, mas isso é bom; se perfeita,
ela pareceria menos humana. O importante, é que ela satisfaz, porque
responde a um anelo. Muitos a sentem como uma boa descoberta.
Moralmente
boa, também, porque ela tem consideração pelos pequeninos, por aqueles que
não pertencem a culturas de prestígio ou a classe social privilegiada. É
digno de atenção, como pessoas de altas posições reciprocamente se
desentendem, usando mal línguas que elas mal dominam, ou como elas mal se
comunicam através de tradutores, apesar dos longos estudos, do poder, da
disponibilidade de dinheiro. Enquanto entre nós esperantistas, homens dos mais comuns,
sem dinheiro, sem diplomas, compreendem-se como na própria língua. Sim,
moralmente boa, porque ela se mostra mais justa do que qualquer outro
método de comunicação entre culturas.
Psicologicamente
boa. Ela é como um modelo de saúde psíquica.
A maioria das línguas não são nem tão
conseqüentes nem tão libertárias. Mas nossa boa
língua traz em si coerência até o mais alto
grau, e nos dá maior liberdade de escolha, na maneira de
nos expressar, do que qualquer outro instrumento de comunicação.
Muito rigorosa ela é, e exige disciplina (apenas consideremos
para compreender isso o –n do acusativo), mas dentro deste rigor,
quanta liberdade ela nos propicia! Em que língua é
possível a gosto escolher entre “mi vin dankas”, “mi
dankas vin” e “mi dankas al vi”? (1)
Entre “li ludas gitaron kun fervoro” ou “li fervore gitaras”?
(2) Precisamente o rigoroso sentido das terminações
libertam o coração e a mente, estimulam fecundamente
a criatividade. Por isso a espontaneidade encontra nela possibilidade
de pleno desenvolvimento, sem semelhança em outra língua.
Quem sabe com tanta beleza associar rigor com liberdade, pensamento
com sentimento, é invejavelmente são do ponto de vista
psicológico.
Boa, no sentido de benfazeja. Que socorre, como um bom amigo.
Quantos problemas ela auxilia a resolver para quem viaja! Quanta alegria
ela traz, fazendo vibrar corações num só ritmo, criando essas ocasiões em
que nós interculturalmente nos reencontramos, apenas para “amikumi”
segundo a bela, profundamente humana expressão de Roger Bernard! Como nos
sentimos bem, tagarelando através dela! Intensa gratidão eu sinto, quando
penso neste aspecto de suas qualidades: ela estimula bons sentimentos, o
que faz a vida mais rica. Ela irradia coisas boas. (...)
A respeito dessa boa língua – em diversos sentidos da palavra – eu gostaria de
compartilhar com vocês os frutos de minhas meditações.
____________
1. Maneiras
diferentes de agradecer a alguém em Esperanto
2. Ele
toca violão com fervor
Fragmento da parte introdutória de “La Bona Lingvo”, de Claude Piron;
Editora “Pro Esperanto” de Viena em parceria com “Hungara Esperanto Asocio”
de Budapest.
Tradução: Neusa
Priscotin Mendes
APERP - Associação Pró-Esperanto de Ribeirão Preto |